Gramsci. A vitalidade de um pensamento – Alberto Aggio (ed.)
O colóquio promovido pela UNESP no Campus de Franca, no Estado de São Paulo, em maio de 1997, reuniu um grupo de pesquisadores brasileiros de alto nível para confrontarem suas diversas
interpretações de alguns aspectos fundamentais da obra do pensador italiano, falecido há sessenta anos, no auge da ditadura fascista de Benito Mussolini.
Gramsci foi rediscutido e homenageado como convinha a um filósofo militante, que concebia o marximo como um “historicismo absoluto”: a troca de idéia dos pesquisadores abordou elementos “datados” da sua perspectiva, porém reconheceu-o, no essencial, como um “contemporâneo” nosso.
Carlos Nelson Coutinho, autor do primeiro dos nove ensaios acolhidos neste volume, chama a atenção justamente para isso: Gramsci não é um “clássico” no mesmo sentido em que o é Hobbes, por exemplo, porque não o consultamos para saber como foi algo e sim para tentarmos compreender como algo está sendo.
Além de sublinhar a importância das idéias de Gramsci sobre socialismo e democracia, ressaltando em especial o alcance da crítica gramsciana à “estatolatria” que se manifestou no modelo adotado e exportado pela União Soviética, Carlos Nelson Coutinho observa que, nas relações da perspectiva de Gramsci com o legado do “contratualismo” de Rousseau e com o legado da concepção hegeliana da história, o autor dos Cadernos do cárcere, de certo modo, “corrige” Rousseau apoiando-se em Hegel, “corrige” Hegel apoiando-se em Rousseau e – aproveitando Marx – vai além dos horizontes tanto do autor do Contrato social como do autor da Fenomenologia do espírito.
No ensaio seguinte, Ivete Simionatto se empenha em dissipar alguns mal-entendidos freqüentes que dificultam o entendimento da categoria dialética da “totalidade”, detendo-se, sobretudo, no papel crucial que essa categoria desempenha na análise que Gramsci empreende da cultura como esfera constitutiva da historicidade do ser social e na abordagem gramsciana da “hegemonia” como “direção intelectual e moral” no processo de transformação das esferas econômica, social e política. Há no ensaio de Ivete Simionatto uma advertência quanto aos efeitos deletérios da atual manobra do conservadorismo que se esforça para despolitizar e fragmentar os sujeitos coletivos.
Uma preocupação análoga à de Carlos Nelson Coutinho e de Ivete Simionatto pode ser detectada no ensaio em que Marco Aurélio Nogueira revisita Gramsci e enxerga nele o “pensador da crise”: não apenas da crise do Estado liberal italiano, que foi derrubado pela ofensiva dos “camisas negras” liderados pelo “Duce”, mas também da crise mais abrangente das relações entre o Estado e a sociedade, que tinha como pano de fundo a politização do social e a socialização do político.
Gramsci percebeu que o movimento comunista, com ferramentas teóricas toscas, não estava enfrentando satisfatoriamente o desafio que se apresentava em novos campos de batalha. E Marco
Aurélio Nogueira afirma que o pensamento de esquerda, hoje, precisa desenvolver o que Gramsci caracterizou como uma “nova política” para defender e ampliar a democracia ameaçada. De acordo
com Marco Aurélio Nogueira, “seria péssimo – para toda a sociedade – se a esquerda desaparecesse ou virasse rótulo inespecífico no exato momento em que se faz mais necessária”.
Marco del Roio traz para o debate uma preocupação diferente: ele enfatiza o peso do legado do leninismo na perspectiva do fundador do Partido Comunista da Itália, que, em sua constante luta contra o reformismo, atuou, de fato, como agente de uma refundação da práxis socialista. Para Marcos del Roio, Gramsci tinha posição acentuadamente crítica em face do “Ocidente”, que ele considerava responsável pela própria existência do atraso do “Oriente”. Combatendo qualquer contraposição mecânica de “Ocidente” e “Oriente”, e insistindo na existência de gradações variáveis entre os dois, o ensaísta não crê que o programa político de Gramsci “vislumbrasse como desejável e inelutável a ocidentalização do mundo”, já que, a seu ver, isso resultaria numa convergência com o reformismo e com a utopia liberal, que Gramsci tanto combateu.
Seguem-se dois textos dedicados à concepção gramsciana dos intelectuais. José Luís Bendicho Beired observa que, em sua reflexão sobre a função e o lugar dos intelectuais, tanto conservadores como transformadores da sociedade, Gramsci procurou compreendê-los nos papéis necessários que desempenhavam e nas responsabilidades que assumiam. Nas condições atuais, sob o capitalismo,
os intelectuais “modernos” desenvolvem uma atuação bastante complexa no plano das ideologias, na elaboração daquilo que Pierre Bourdieu chamou de “dominação simbólica”.
José Luís Bendicho Beired assinala uma limitação da teoria gramsciana dos “funcionários da ideologia”: ele acha que a visão que Gramsci tinha dos intelectuais não lhe permitia abordar os problemas
ligados à persistência de desigualdades entre dirigentes e dirigidos nos partidos e organizações de esquerda.
Milton Lahuerta reconstitui o pano de fundo histórico que punha na ordem do dia para a cultura européia das primeiras décadas do século XX o desafio de uma reflexão sobre os intelectuais.
Ele lembra que naquele período se fortaleceu uma linha de pensamento que via os intelectuais como “clérigos”, que devia zelar por valores “eternos” (Julien Benda, Karl Mannheim, Ortega y Gasset e Benedetto Croce, entre outros). Numa outra direção, apareciam muitos intelectuais que, acuados pela barbárie fascista, aderiam ao movimento comunista com uma perspectiva de “missão”. Segundo Milton Lahuerta, Gramsci, no cárcere, conseguiu refletir sobre o tema dos intelectuais evitando tanto o idealismo dos “clérigos” como o “romantismo” dos “missionários”.
Alberto Aggio, além de ter sido o coordenador do colóquio e ser o organizador da publicação, é o autor do ensaio seguinte, que introduz a reflexão sobre o tema da concepção gramsciana da “revolução passiva”, tão caro a Luiz Werneck Vianna (que também o aborda no trabalho que fecha o volume). Segundo Alberto Aggio, o conceito de “revolução passiva”, tal como o concebe Gramsci, pode nos ajudar a compreendermos os processos de construção do Estado e de modernização capitalista na América
Latina. Embora a “revolução passiva”, por sua própria natureza, não corresponda a um programa no qual as classes subalternizadas possam se reconhecer plenamente, os de “baixo” podem, de algum modo e em certa medida, influir de maneira significativa em deteminadas modalidades de “revolução passiva”.
O penúltimo texto do livro é o de José Antonio Segatto, que trata de reconstruir, com riqueza de informações, elementos da história da difusão dos escritos de Gramsci entre nós e das histórias das referências que passaram a ser feitas no Brasil ao pensador italiano, sobretudo a partir dos anos 60. A reconstituição evoca o “boom” da segunda metade dos anos 70 e da primeira metade dos anos 80 e aborda também o atual período de refluxo. José Antonio Segatto sugere a existência de alguns pontos nos quais poderia ser constatada certa influência das teorias de Gramsci sobre o Partido Comunista Brasileiro, o PCB, que depois deu origem ao atual PPS.
Por fim, Luiz Werneck Vianna volta ao conceito gramsciano de “revolução passiva” e reexamina os caminhos e descaminhos do paradoxal processo pelo qual, no Brasil, a conservação, para bem cumprir seu papel, reivindica aquilo que deveria ser seu contrário: a revolução. Luiz Werneck Vianna fala da tensa ambigüidade do Estado Imperial do século XIX, que combinava liberalismo e escravidão, e em certo sentido buscava a sua sociedade. A revolução burguesa deu continuidade a um “lento movimento de transição da ordem senhorial-escravocrata para uma ordem competitiva”, numa espécie de “dialética sem síntese” ou “transformismo ininterrupto”. Agora, porém, chegamos a uma situação na qual a sociedade (a nação) atua com objetivo de conquistar direitos e cidadania para a maioria da população. Quer dizer: ela procura conceber seu Estado.
Os nove ensaios acolhidos neste volume merecem ser lidos com atenção. As breves indicações que me permiti fazer nesta apresentação a respeito de cada um deles tiveram um único objetivo: suscitar a curiosidade dos leitores. Asseguro-lhes de que, lendo-os, vocês encontrarão, na diversidade deles, um riquíssimo material para reflexão. (de la presentación de Leandro Konder)