Gramsci e a sociedade civil
2000
(Reseña del libro de Giovanni Semeraro. Gramsci e a sociedade civil. Petrópolis, Vozes, 1999.)
Curioso destino teve o conceito de ‘sociedade civil’ no Brasil. Seu uso entre nós, tanto na Universidade quanto no jornalismo político, data da segunda metade dos anos 70, quando se acentuam os processos de corrosão da ditadura militar, causados em grande parte pela irrupção de novos movimentos sociais, entre os quais se destaca o novo sindicalismo do ABC. Não é casual que tenha sido nesse mesmo momento que Antonio Gramsci se transformou num dos mais importantes interlocutores do pensamento social brasileiro. Compreende-se assim que o termo ‘sociedade civil’, que então entrava em moda, terminasse por ser identificado – em muitos casos equivocadamente – com o conceito análogo de Gramsci, conceito que ocupa uma posição central na filosofia política do pensador marxista italiano.
No contexto da luta contra a ditadura, ‘sociedade civil’ tornou-se sinônimo de tudo aquilo que se contrapunha ao Estado ditatorial, o que era facilitado pelo fato de ‘civil’ significar também, no Brasil, o contrário de ‘militar’. Disso resultou uma primeira leitura problemática do conceito: o par conceitual sociedade civil / Estado, que forma em Gramsci uma unidade na diversidade, assumiu os traços de uma dicotomia radical, marcada ademais por uma ênfase maniqueísta. Nessa nova leitura, ao contrário do que é dito por Gramsci, tudo o que provinha da ‘sociedade civil’ era visto de modo positivo, enquanto tudo o que dizia respeito ao Estado aparecia marcado com sinal fortemente negativo.
Esse deslizamento conceitual, muitas vezes apresentado como a verdadeira teoria gramsciana, não provocou, no momento da transição, maiores estragos, embora tenha contribuído para obscurecer o caráter contraditório das forças sociais que formavam a sociedade civil brasileira, as quais, apesar dessa contraditoriedade, convergiam objetivamente na comum oposição à ditadura; esse obscurecimento, decerto, facilitou a hegemonia das forças liberais no processo de transição, que Florestan Fernandes não hesitou em chamar de ‘transação conservadora’. Mas as coisas se complicaram decisivamente quando, a partir de final dos anos 80, a ideologia neoliberal em ascensão apropriou-se daquela dicotomia maniqueísta para demonizar de vez tudo o que provém do Estado (mesmo que se trate agora de um Estado de direito) e para fazer a apologia acrítica de uma ‘sociedade civil’ despolitizada, ou seja, convertida num mítico ‘terceiro setor’ falsamente situado para além do Estado e do mercado.
Embora o belo livro que o leitor tem em mãos não assuma essa problemática como tema central, ela constitui certamente o pano de fundo e o motivo inspirador da instigante pesquisa que nele desenvolve. O objetivo central deste livro consiste precisamente no resgate do verdadeiro conceito gramsciano de ‘sociedade civil’, revelado aqui em toda a sua densidade política. Com efeito, na visão de Gramsci, ‘sociedade civil’ é uma arena privilegiada da luta de classe, uma esfera do ser social onde se dá uma intensa luta pela hegemonia; e, precisamente por isso, ela não é o ‘outro’ do Estado, mas – juntamente com a ‘sociedade política’ ou o ‘Estado-coerção’ – um dos seus inelimináveis momentos constitutivos. Para Gramsci, como Semeraro nos mostra muito bem, nem tudo o que faz parte da sociedade civil é ‘bom’ (ela pode, por exemplo, ser hegemonizada pela direita) e nem tudo o que provém do Estado é ‘mau’ (ele pode expressar demandas universalistas que se originam nas lutas das classes subalternas). Somente uma concreta análise histórica da correlação de forças presente em cada momento pode definir, do ângulo das classes subalternas, a função e as potencialidades positivas ou negativas tanto da sociedade civil como do Estado.
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