A Democracia como valor universal
Carlos Nelson Coutinho
A questão do vínculo entre socialismo e democracia marcou sempre, desde o início, o processo de formação do pensamento marxista; e, direta ou indiretamente, esteve na raiz das inúmeras controvérsias que assinalaram e assinalam a história da evolução desse pensamento. Não se deve esquecer que Marx, antes de empreender a sua monumental crítica da economia política, já havia esboçado em suas obras juvenis os pressupostos de uma crítica da política, de uma crítica da democracia representativa burguesa; e que Engels chegou ao fim da vida preocupado com as novas condições que a conquista do sufrágio universal (da ampliação da democracia) colocava ao movimento operário socialista. Por outro lado, a questão do valor universal da democracia está na base não apenas das polêmicas entre “revisionistas” e «ortodoxos”, na virada do século, mas reaparece igualmente entre os principais representantes da esquerda marxista na época imediatamente subseqüente à Revolução de Outubro: basta aqui recordar a polêmica entre Rosa Luxemburgo, por um lado, e Lênin e Trotski, por outro, acerca da conservação de certos institutos democráticos sob o governo proletário que surgira daquela Revolução.
E, se hoje se generaliza entre os marxistas ocidentais a rejeição do “modelo soviético” como modelo universal de socialismo, isso resulta em grande parte de uma diversa concepção do vínculo socialismo-democracia por parte desses marxistas. Concepção que Enrico Berlinguer sintetizou expressivamente no discurso que pronunciou em Moscou, em 1977, por ocasião do 60º aniversário da Revolução de Outubro: “A democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é obrigado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual fundar uma original sociedade socialista”. Essa universalidade não deve ser concebida apenas num sentido teórico; o valor da democracia não se limita a áreas geográficas. Pois se há por sua vez algo de universal nas reflexões teóricas na prática política do que é hoje chamado de eurocomunismo, esse algo é precisamente o modo novo — um modo dialeticamente novo, não uma novidade metafisicamente concebida como ruptura absoluta — de conceber essa relação entre socialismo e democracia.
Uma prova dessa universalidade são as acesas polêmicas que têm hoje lugar entre as forças progressistas brasileiras, envolvendo o significado e o papel da luta pela democracia em nosso País. Pode-se facilmente constatar nesse sentido, a presença de diferentes e até mesmo contraditórias concepções de democracia entre as correntes que se propõem representar os interesses populares e, em particular, os das massas trabalhadoras. Trata-se de um fato normal e saudável, contanto que não se perca de vista a necessidade imperiosa de acentuar – na presente conjuntura – aquilo que une a todos os oposicionistas, ou seja, a luta pela conquista de um regime de liberdades político-formais que ponha definitivamente termo ao regime de exceção que, malgrado a fase de transição que se esboça, ainda domina em nosso País.
Não creio que nenhuma formação popular responsável ponha hoje em dúvida a importância dessa unidade em torno da luta pelas liberdades democráticas tais como essas são definidas, entre outros, no atual programa do MDB. Todavia, há correntes e personalidades que revelam ter da democracia uma visão estreita, instrumental, puramente tática; segundo tal visão, a democracia política — embora útil à luta das massas populares por sua organização e em defesa dos seus interesses econômico-corporativos – não seria mais, em última instância e por sua própria natureza, do que uma nova forma de dominação da burguesia, ou, mais concretamente, no caso brasileiro, dos monopólios nacionais e internacionais.
Essa visão estreita se baseia, antes de mais nada, numa errada concepção da teoria marxista do Estado, numa falsa e mecânica identificação entre democracia política e dominação burguesa. Mas implica, em segundo lugar, ainda que por vezes implicitamente, uma concepção equivocada das tarefas que se colocam atualmente ao conjunto das forças populares brasileiras: essas tarefas não podem ser identificadas com a luta imediata pelo socialismo, mas sim com um combate árduo e provavelmente longo pela criação dos pressupostos políticos, econômicos e ideológicos que tomarão possível o estabelecimento e a consolidação do socialismo em nosso País.
Nosso objetivo, no presente artigo, é esboçar sumariamente – muito mais levantando questões do que propondo respostas sistemáticas – os tópicos essenciais dessas duas ordens de questões. Em primeiro lugar, tentaremos indicar como o vínculo socialismo-democracia é parte integrante do patrimônio categorial do marxismo; e, em segundo, mostraremos como a renovação democrática do conjunto da vida nacional – enquanto elemento indispensável para a criação dos pressupostos do socialismo – não pode ser encarada apenas como objetivo tático imediato, mas aparece como o conteúdo estratégico da etapa atual da revolução brasileira.
1. Algumas questões de principio sobre o vínculo entre socialismo e democracia política
Quando, em polêmica com Kautsky, Lênin afirmou que não existia “democracia pura”, que a democracia era sempre ou burguesa ou proletária, de não punha em discussão o que Berlinguer chama hoje de valor universal da democracia política. O que Lênin tinha em vista, contra o formalismo oportunista de Kautsky, não era negar a validade do substantivo democracia, mas lembrar que – no plano do conteúdo concreto – ele aparece sempre adjetivado. Em outras palavras: fiel ao ensinamento de Marx e Engels, Lênin afirmava não poder existir – salvo em breves períodos de transição – regime estatal sem conteúdo de classe determinado, sem que uma classe fundamental no modo de produção determinante exerça através desse regime (não importa por meio de quantas mediações) sua dominação sobre o conjunto da sociedade.
Tendo sempre combatido, desde sua juventude, as interpretações redutoras e economicistas do marxismo, Lênin não podia negar a autonomia relativa das superestruturas no seio da totalidade social; a acentuação lenineana do papel da subjetividade humana na práxis, do papel da política, em oposição às interpretações economicistas (objetivistas) dominantes no marxismo da II Internacional, tem sua base teórica nessa visão dialética da autonomia relativa das superestruturas. Portanto, se quisermos ser fiéis ao método de Lênin (1), temos de chegar à seguinte conclusão: é verdade que o conjunto das liberdades democráticas em sua forma moderna (o princípio da soberania e da representação popular, o reconhecimento legal do pluralismo etc.) tem sua gênese histórica nas revoluções burguesas, ou mais precisamente, nos amplos movimentos populares que terminaram (mais ou menos involuntanamente) por abrir o espaço político necessário à consolidação e reprodução da economia capitalista; mas é igualmente verdade que, para o materialismo histórico, não existe identidade mecânica entre gênese e validade, Lênin certamente conhecia a observação de Marx segundo a qual a arte de Homero não perde sua validade universal – e inclusive sua função de modelo – com o desaparecimento da sociedade grega primitiva que constitui sua necessária gênese histórica.
Se, como acreditamos, a observação de Marx tem alcance metodológico geral (malgrado as concretizações que devem ser feitas em cada esfera concreta do ser social), podemos extrair dela uma conclusão acerca da questão da democracia: nem objetivamente, com o desaparecimento da sociedade burguesa que lhes serviu de gênese, nem subjetivamente, para as forças empenhadas nesse desaparecimento, perdem seu valor universal inúmeras das objetivações ou formas de relacionamento social que compõem o arcabouço institucional da democracia política.
E não se trata apenas de constatar o óbvio: o valor que continuam a ter para as forças do progresso, nas sociedades capitalistas de hoje a conservação e a plena realização desses institutos democráticos, conservação e realização que são asseguradas em grande parte – e muitas vezes em oposição aos interesses burgueses atuais – pela luta do movimento operário organizado. É preciso ir além dessa constatação e afirmar claramente que, tanto na fase de transição quanto no socialismo plenamente realizado, continuarão a existir interesses e opiniões divergentes sobre inúmeras questões concretas; e isso porque – ao contrário do que afirma a concepção stalinista – o processo de extinção das classes faz certamente com que a sociedade tenda à unidade, mas não significa de modo algum a sua completa homogeneização. E, dado que mesmo essa unidade tendencial é uma unidade na diversidade, é fundamental que tais interesses divergentes encontrem uma forma de representação política adequada.
A pluralidade de sujeitos políticos, a autonomia dos movimentos do massa (da sociedade civil) em relação ao Estado, a liberdade de organização, a legitimação da hegemonia através da obtenção do consenso majoritário: todas essas conquistas democráticas, portanto, continuam a ter pleno valor numa sociedade socialista. (E não é preciso recorrer a Gramsci ou aos teóricos atuais do eurocomunismo para afirmar isso: Lênin foi um dos primeiros a reconhecer esse valor quando se opôs à transformação dos sindicatos em “correias de transmissão” do Estado socialista, na famosa polêmica que travou com Trótski em 1921). Estamos diante de formas de relacionamento social sem as quais não se cumpre o que Marx e Engels exigiam do socialismo: “que o livre desenvolvimento de cada um fosse a condição necessária para o livre desenvolvimento de todos”. Portanto, para aqueles que, em nome dos interesses histórico-universais dos trabalhadores, lutam pelo socialismo, a democracia política não é um simples princípio tático: é um valor estratégico permanente, na medida em que é condição tanto para a conquista quanto para a consolidação e aprofundamento dessa nova sociedade.
Isso não significa, decerto, que a democracia socialista, mesmo do ponto de vista político-institucional (ou seja, mesmo deixando de lado as profundas transformações econômicas e sociais – gradativa abolição da propriedade privada dos meios de produção – que ela implica para sua completa realização), possa ser vista como uma simples continuação da democracia liberal tal como essa foi concebida pelos teóricos do século XVIII (Locke, Montesquieu, etc.), ou mesmo tal como aparece na prática dos mais avançados países capitalistas de hoje. A concepção segundo a qual a velha maquina estatal deve ser destruída para que se possa implantar a nova sociedade – uma metáfora que é muitas vezes entendida em sentido demasiadamente lileral — quer indicar precisamente que a democracia política no socialismo pressupõe a criação (e/ou a mudança de função) de novos institutos políticos que não existem, ou existem apenas embrionariamente, na democracia liberal clássica. E, do mesmo modo como as forças produtivas materiais necessárias à criação da nova formação econômico-social já começam a se desenvolver no seio da velha sociedade capitalista, assim também esses elementos da nova democracia já se esboçam – freqüentemente em oposição aos interesses burgueses e aos pressupostos teóricos e práticos do liberalismo clássico – no seio dos regimes políticos contemporâneos dominados pela burguesia. Refiro-me aos mecanismos de representação direta das massas populares (partidos, sindicatos, associações profissionais, comitês de empresa e de bairro, etc.), mecanismos através dos quais essas massas populares – e em particular a classe operária – se organizam de baixo para cima e constituem aquilo que poderíamos chamar de sujeitos políticos coletivos.
Não seria difícil mostrar como a formação desses sujeitos políticos coletivos – não previstos pela atomista teoria liberal clássica – corresponde aos processos de socialização da produção que se acentuam no capitalismo e, em particular, no capitalismo monopolista de Estado. Portanto, é a própria reprodução capitalista enquanto fenômeno social global que impõe essa crescente socialização da política, ou seja, a ampliação do número de pessoas e de grupos empenhados politicamente na defesa dos seus interesses específicos. A essa socialização objetiva da participação política deve corresponder, em medida cada vez maior, uma socialização dos meios e dos processos de governar o conjunto da vida social, Nesse sentido, o socialismo não consiste apenas na socialização dos meios de produção, uma socialização tornada possível pela prévia socialização do trabalho realizada sob o impulso da própria acumulação capitalista; ele consiste também – ou deve consistir numa progressiva socialização dos meios de governar, uma socialização também aqui tornada possível pela crescente participação das massas na vida política, através dos sujeitos políticos coletivos que as vicissitudes da reprodução capitalista – sobretudo na fase monopolista – impõem às várias classes e camadas sociais prejudicadas pela dinâmica privatista dessa reprodução (2).
Em outras palavras: o socialismo não elimina apenas a apropriação privada dos frutos do trabalho coletivo; elimina também – ou deve eliminar – a apropriação privada dos mecanismos de dominação e de direção da sociedade como um todo. A superação da alienação econômica é condição necessária mas não suficiente para a realização do humanismo socialista: essa realização implica também a superação da alienação política. (Uma necessidade de que Lênin era também consciente: basta lembrar a sua concepção da cozinheira que dirige o Estado.) A superação da alienação política pressupõe o fim do “isolamento” do Estado, sua progressiva reabsorção pela sociedade que o produziu e da qual ele se alienou; ora, isso só se tornará possível através de uma crescente articulação entre os organismos populares de democracia direta e os mecanismos “tradicionais” de representação indireta (partidos, parlamentos, etc.). Essa articulação fará com que esses últimos adquiram uma nova função – ampliando o seu grau de representatividade – na medida em que se tomarem o local de uma síntese política dos vários sujeitos políticos coletivos. E essa síntese é imprescindível se não se quer que esses sujeitos coletivos sejam coagulados ao nível da defesa corporativista de interesses puramente grupais e particularistas, reproduzindo assim a atomização da sociedade civil que serve objetivamente à dominação burguesa.
A idéia dessa articulação entre democracia representativa e democracia direta já faz parte do patrimônio teórico do marxismo. Assim, já na década de vinte, o austromarxista Max Adler observava que a ausência de mecanismos de representação política geral podia converter a democracia conciliar (dos conselhos operários de base) numa representação puramente corporativista, incapaz de operar como ponto de partida para uma direção hegemônica unitária do conjunto da sociedade; por isso, ele propunha uma integração entre o parlamento e os conselhos operários, o que o colocava numa posição intermediária entre o bolchevismo originário e a social-democracia de inspiração kautskyana (3). Uma preocupação similar, ainda que sem referência direta a Max Adler, reaparece nas reflexões contemporâneas do comunista italiano Pietro Ingrao, também ele preocupado em fundar uma “terceira via” entre o modelo soviético atual e a capitulação objetiva da social-democracia de hoje a uma “gestão honesta do capitalismo” (4). É nossa convicção que a democracia de massas (a expressão é de Ingrao) que deve servir de superestrutura à transição para, e à construção de, uma sociedade socialista tem de surgir dessa articulação entre as formas de representação tradicionais e os organismos de democracia direta; essa articulação, como dissemos, deve promover a síntese dos vários sujeitos políticos empenhados na transformação social uma síntese que – respeitada a autonomia e o pluralismo dos movimentos de base – seja a portadora da hegemonia dos trabalhadores sobre o governo da sociedade como um todo. O que se propõe, em outras palavras é a constituição do “autogoverno dos produtores associados”, a que se referiam Marx e Lênin.
E quando falamos de hegemonia, colocamos também um ponto de discriminação entre o liberalismo e a democracia, ou, noutras palavras, entre a concepção burguesa e a concepção marxista da democracia (5). A teoria liberal clássica parte do reconhecimento de uma pluralidade de sujeitos individuais autônomos e supõe – sobre a base de uma idealização dos mecanismos reguladores do mercado capitalista – que os interesses plurais de tais m,jeitos serão automaticamente harmonizados e coordenados: a mítica “mão
Invisível” de Adam Smith se encarregaria de fazer com que a máxima explicitação dos interesses egoístas individuais desembocasse num aumento do bem-estar geral. Como tal teoria se apoiava numa falsidade de base ao pressupor uma inexistente igualdade real (e não apenas formal) dos sujeitos econômicos, ou seja, ao abstrair-se do fato de que uns são donos dos meios de produção e outros apenas de sua força de trabalho – o modo prático pelo qual se dava aquela “harmonização” era a subtraçao do poder execuüvode qualquer controle público, mesmo através do parlamento burguês. (Uma tendência que só iria se acentuar na época do capital monopolista, quando o desaparecimento da taxa média única de lucro aguça as contradições intercapitalistas entre setores monopolistas e não monopolistas; e quando a classe operária começa a ganhar uma representação parlamentar própria.) O poder executivo passa assim a ser encarnado por um grupo de burocratas que se subtrai ao controle público e, com isso, transforma o Estado num corpo separado e posto “acima” da sociedade (6). Não é aqui o local para insistir sobre o caráter aparente – ainda que se trate de uma “aparência necessaria” (Marx) – dessa separação e desse isolamento do Estado: o que a burocracia ligada ao Executivo faz, na realidade, é “harmonizar” os interesses do capital em seu conjunto, pondo-se acima das “paixões” individuais dos capitalistas singulares, e operar ao mesmo tempo no sentido de que tais interesses se imponham “automaticamente” sobre o conjunto da sociedade.
Nada disso impede, contudo, que na teoria liberal moderna (que foi inteiramente assimilada pela hodierna social-democracia) se continue a afirmar que democracia é sinônimo de pluralismo e que a defesa da hegemonia de uma classe ou conjunto de classes é, por sua própria natureza, sinônimo de totalitarismo e de despotismo. A teoria socialista deve criticar a mistificação que se oculta por trás dessa formulação liberal: deve colocar claramente a questão da hegemonia como questão central de todo poder de Estado. Se a burguesia disfarça sua dominação por meio do “isolamento” e da “neutralidade da burocracia estatal, as classes populares devem pôr abertamente sua candidatura a hegemonia, ao mesmo tempo em que lutam para superar a dominação efetiva de uma restrita oligarquia monopolista sobre o conjunto da sociedade. Mas, se socialismo é também sinônimo de apropriação coletiva dos mecanismos de poder, a hegemonia dos trabalhadores não pode (e não deve) se fazer por intermédio de uma nova burocracia que governe “de cima para baixo”; a libertação do proletariado, como disse Marx, é obra do próprio proletariado; e deve se fazer mediante a criação de uma democracia de massas que inverta essa tendência à burocratização e à alienação do poder. Nessa democracia de massas, a dialética do pluralismo – a autonomia dos sujeitos políticos coletivos – não anula, antes impõe, a busca constante da unidade política, a ser construída de baixo para cima, através da obtenção do consenso majoritário; e essa unidade democraticamente conquistada será o veículo de expressão da hegemonia dos trabalhadores.
A democracia socialista é, assim, uma democracia pluralista de massas; mas uma democracia organizada, na qual a hegemonia deve caber ao conjunto dos trabalhadores representados através da pluralidade dos seus organismos (partidos, sindicatos, comitês de empresa, comunidades de base, etc.) Se o liberalismo afirma teoricamente o pluralismo e mistifica/oculta a hegemonia, se o totalitarismo absolutiza a dominação e reprime o pluralismo, a democracia de massas funda sua especificidade na articulação do pluralismo com a hegemonia, na luta pela unidade na diversidade dos sujeitos políticos coletivos autônomos (7). Por outro lado, não se deve esquecer – se quisermos pensar a longo prazo – que a apropriação social da política é, em última instancia, sinônimo de extinção do Estado, ou seja, de extinção dos aparelhos de dominação enquanto aparelhos apropriados individualmente e postos aparentemente “acima” da sociedade. É nesse sentido que cabe entende, a lúcida observação de Gramsci, segundo a qual a “sociedade regulada” (sem classes) é aquela na qual o Estado será absorvido pelos organismos autogeridos da “sociedade civil”. Podemos concluir esse rápido esboço afirmando que a relação da democracia socialista com a democracia liberal é uma relação de superação dialética (Aufhebung): a primeira elimina, conserva e eleva a nível superior as conquistas da segunda.
2. O caso brasileiro: a renovação democrática como alternativa à “via prussiana”
O valor da democracia política para as correntes de esquerda em nosso País ganha uma dimensão ainda mais concreta – indo além do plano teórico abstrato geral que esboçamos acima – se analisamos de perto as vicissitudes da história brasileira, se situamos dialeticamente os problemas de hoje no amplo quadro histórico da formação nacional. Não me refiro apenas ao fato de que o povo brasileiro está hoje colocado diante de uma tarefa democrática urgente e prioritária: a de derrotar o regime de exceção implantado em nosso País depois de 64 e, com isso, construir um regime político que assegure as liberdades fundamentais. A questão da democracia, inclusive em seus limites puramente formal-liberais, é assim a questão decisiva da vida brasileira de hoje. Mas o valor da democracia adquire para nós outra dimensão (e já aqui superando dialeticamente, no sentido acima indicado, a democracia puramente liberal) quando elevamos à consciência o fato de que o regime de exceção vigente é “apenas” a expressão atual – uma expressão extrema e radicalizada – de uma tendência dominante na história brasileira. Refiro-me ao caráter elitista e autoritário que assinalou toda a evolução política, econômica e cultural do Brasil, mesmo em seus breves períodos “democráticos”.
Como já foi assinalado várias vezes, as transformações políticas e a modernização econômico-social no Brasil foram sempre efetuadas no quadro de uma “via prussiana”, ou seja, através da conciliação entre frações das classes dominantes, de medidas aplicadas “de cima para baixo” com a conservação essencial das relações de produção atrasadas (o latifúndio) e com a reprodução (ampliada) da dependência ao capitalismo internacional; essas transformações “pelo alto” tiveram como causa e efeito principais a permanente tentativa de marginalizar as massas populares não só da vida social em geral, mas sobretudo do processo de formação das grandes decisões políticas nacionais (8). Os exemplos são inúmeros: quem proclamou nossa Independência política foi um príncipe português, numa típica manobra pelo alto”; a classe dominante do Império foi a mesma da época colonial; quem terminou capitalizando os resultados da proclamação da República (também ela proclamada “pelo alto”) foi a velha oligarquia agrária; a Revolução de 1930, apesar de tudo, não passou de uma “rearrumação” do velho bloco de poder, que cooptou – e, desse modo, neutralizou e subordinou – alguns setores mais radicais das camadas médias urbanas; a burguesia industrial floresceu sob a proteção de um regime bonapartista, o Estado Novo, que assegurou pela repressão e pela demagogia a neutralização da classe operaria, ao mesmo tempo em que conservava quase intocado o poder do latifúndio, etc. Mas essa modalidade de “via prussiana” (Lênin, Lukács) ou de “revolução- restauração” (Gramsci) encontrou seu ponto mais alto no atual regime militar, que criou as condições políticas para a implantação em nosso País de uma modalidade dependente (e conciliada com o latifúndio) de capitalismo monopolista de Estado, radicalizando ao extremo a velha tendência a excluir tanto dos frutos do progresso quanto das decisões políticas as grandes massas da população nacional.
Para o conjunto das forças populares, coloca-se assim uma tarefa de amplo alcance: a luta para inverter essa tendência elitista ou “prussiana» da política brasileira e para eliminar suas conseqüências nas várias esferas do ser social brasileiro. (Não se deve esquecer, antes de mais nada, que a “via prussiana” levou sempre à construção das superestruturas adequadas à dominação de uma restrita oligarquia – primeiro latifundiária, agora monopolista – sobre a esmagadora maioria da população.) A luta pela eliminação dessa tendência confunde-se com uma profunda renovação democrática do conjunto da vida brasileira; essa renovação aparece, portanto, não apenas como a alternativa histórica à “via prussiana”, como o modo de realizar em condições novas as tarefas que a ausência de uma revolução democrático-burguesa deixou abertas em nosso País, mas também – e precisamente por isso – como o processo da criação dos pressupostos necessários a um avanço do Brasil no rumo do socialismo.
Uma direta conseqüência da “via prussiana” foi gerar uma grande debilidade histórica da democracia no Brasil. Essa debilidade não se expressa apenas no plano do pensamento social (basta lembrar o caráter conciliador do nosso liberalismo), ela tem consequências na própria estrutura do relacionamento do Estado com a sociedade civil, já que ao caráter extremamente forte e autoritário do primeiro corresponde a natureza amorma e atomizada da segunda. Essa debilidade histórico-estrutural da democracia, aliada à presença de um regime profundamente antidemocrático, faz com que o processo de renovação democrática assuma como tarefa prioritária de hoje a construção e consolidação de determinadas formas de relacionamento social que, num primeiro momento, não deverão provavelmente ultrapassar os limites da democracia liberal. Em termos de conteúdo, isso significa que as forças hegemônicas do novo regime liberal continuarão a ser, durante um certo tempo, os monopólios nacionais e internacionais, ainda que essa hegemonia seja exercida de modo menos absoluto e depótico que sob o atual regime.
Mas isso não altera o valor dessas conquistas liberal-democráticas para as forças populares. Em primeiro lugar, a criação de um regime de liberdades formais representaria a superação da atual modalidade concreta da “via prussiana”; e, em segundo, a consolidação de um regime democrático aparece como um pressuposto que deverá ser reposto – conservado e ao mesmo tempo aprofundado – em cada etapa da luta pela completa realização dos objetivos finais das correntes socialistas. Em outras palavras: a conquista de um regime de democracia política não é uma etapa no caminho do socialismo a ser posteriormente abandonada em favor de tipos de dominação formalmente não-democráticos. É, antes, a criação de uma base, de um patamar mínimo que deve certamente ser aprofundado (tanto em sentido econômico- social quanto em sentido político), mas também conservado ao longo de lodo o processo. Aquilo que antes afirmamos em nível teórico vale também para o caso brasileiro: a democracia de massas que os socialistas brasileiros se propõem construir conserva e eleva a nível superior as conquistas puramente liberais.
Em que consiste essa “elevação a nível superior”? Antes de mais nada, em medidas que eliminem gradualmente as bases econômico-sociais que não só tornaram possível a emergência da “via prussiana” elitista e oligárquica, mas que contribuem para reproduzi-la (de modo ampliado) permanentemente. Em poucas palavras (pois não é aqui o local para sequer esboçar um plano econômico democrático detalhado, nem sou competente para faze-lo): trata-se de democratizar a economia nacional, criando uma situação na qual os frutos do trabalho do povo brasileiro – que se torna cada vez mais produtivo – revertam em favor da grande maioria da população. Isso aparece como pressuposto indispensável para integrar na sociedade nacional, na condição de sujeitos, enormes parcelas da população hoje reduzidas a uma condição subumana, e, desse modo, destruir pela raiz os processos marginalizadores que caracterizam a “via prussiana”. Concretamente, em nossos dias, a democratização da economia requer a aplicação de um programa econômico antimonopolista, antilatifundiário e antiimperialista; um programa que interessaria a amplas parcelas da população, desde a classe operaria e os camponeses até as camadas médias assalariadas e a pequena e média burguesia nacional. E não se trata de um programa de gabinete, a ser mais uma vez concebido e aplicado de “cima para baixo”, por tecnocratas eventualmente generosos- a elaboração, aplicação e controle de um programa de democratização da economia deve resultar de um amplo debate que envolva todas as forças interessadas (partidos, sindicatos, associações profissionais, etc.); só assim ele obterá o consenso majoritário à sua aplicação consequente e, mais que isso, contribuirá – ao transformar as camadas trabalhadoras em sujeitos ativos do governo da economia – para o processo geral de renovação democrática do País.
Mas a “elevação a nível superior” pressupõe igualmente um aprofundamento político da democracia: a ampla incorporação organizada das grandes massas na vida política nacional – a socialização crescente da política – é o único antídoto de eficácia duradoura contra o veneno da “via prussiana”. E essa socialização da política já não é mais, em nosso País, um simples desejo subjetivo. Embora duramente reprimida, a sociedade civil brasileira – impulsionada indiretamente pelo processo de modernização conservadora e de diferenciação social favorecido pela nossa última “revolução pelo alto” cresceu e se tomou mais complexa nos últimos 15 anos. Multiplicaram-se sobretudo nos últimos tempos, organismos de democracia direta, sujeitos políticos coletivos (comissões de empresa, associações de moradores, comunidades religiosas de base, etc.); e, além disso, ganharam autonomia e representatividade, na medida em que se desligaram praticamente da tutela do Estado, antigos organismos de massa, como alguns dos principais sindicatos do País, ou poderosos aparelhos privados de hegemonia, como a OAB, a CNBB, etc. Isso abre a possibilidade concreta de intensificar a luta pelo aprofundamento da democracia política no sentido de uma democracia organizada de massas, que desloque cada vez mais “para baixo” o eixo das grandes decisões hoje tomadas “pelo alto”.
Ampliar a organização e a articulação desses vários sujeitos políticos coletivos de base e ao mesmo tempo, lutar por sua unificação (respeitadas sua autonomia e diversidade) num poderoso bloco democrático e popular não é apenas condição para extirpar definitivamente os elementos ditatoriais que deverão permanecer ao longo do período de transição que se anuncia: é também um passo decisivo no sentido de criar os pressupostos para o aprofundamento e generalização do processo de renovação democrática e consequentemente, para o êxito do programa antimonopolista de democratização da economia no rumo do socialismo. Esse bloco unitário dos organismos do democracia de base já é hoje – e deverá se tornar cada vez mais – um poderoso instrumento de pressão e controle sobre a ação dos mecanismos de representação indireta, como os parlamentos.
A necessidade de que o processo de renovação democrática proceda de “baixo para cima”, consolidando e ampliando suas conquistas através de uma crescente incorporação de novos sujeitos políticos, impõe às forças populares – enquanto método de sua batalha política – a opção por aquilo que Gramsci chamou de “guerra de posição”. A progressiva conquista de posições firmes no seio da sociedade civil é a base não só para novos avanços, que gradativamente tomarão realista a questão da conquista democrática do poder de Estado pelas classes trabalhadoras, mas é sobretudo o meio de evitar precipitações que levem a recuos desastrosos. Nesse sentido, as forças realmente populares devem estar permanentemente alertas contra as tentações do “golpismo”, o qual – mesmo quando se apresenta sob vestes falsamente “progressistas” – não faz senão repetir os procedimentos elitistas que caracterizam a “via prussiana”. Qualquer tentativa de impor modificações radicais por meio da ação de minorias (militares ou não) levará as forças populares a grandes desastres políticos; além disso, significará o truncamento do processo de renovação democrática, um processo que – nunca e demais insistir – só será efetivo e realmente popular quando crescer “de baixo para cima” e quando representar a incorporação de amplas maiorias ao cenário político. O “golpismo de esquerda” – que infelizmente marcou boa parte do pensamento e da ação política das correntes populares no Brasil é apenas uma resposta equivocada e igualmente “prussiana” aos processos de direção “pelo alto” de que sempre se valeram as forças conservadoras e reacionárias em nosso País. Quanto mais se torne efetiva e sociação da política, tanto menos será possível invocar a justificação relativa de processos desse tipo.
A luta pela renovação democrática – precisamente por recorrer a “guerra de posição” como método e por afastar resolutamente qualquer tentação “golpista” ou “militarista” – implica em conceber a unidade como valor estratégico. Já nos referimos ao fato de que o necessário pluralismo dos sujeitos coletivos de base degenera em formas de corporativismo quando não se verifica um processo de unificação política, através da mediação dos organismos representativos de âmbito nacional; por outro lado, a democracia de massas – enquanto democracia real – pressupõe que a conquista a hegemonia se faça através da obtenção do consenso majoritário das correntes políticas e das classes e camadas sociais (9). (Talvez não seja inútil lembrar que maioria implica minoria, cujos direitos – na medida em que sua ação oposicionista não viole a legalidade constitucional democraticamente fundada – terão de ser respeitados.) Mas essa afirmação do valor estratégico da unidade ganha um traço concreto específico quando referido ao Brasil: a tarefa da renovação democrática implica a crescente socialização da política, a incorporação permanente e anti-“prussiana” de novos sujeitos individuais e coletivos ao processo de transformação da realidade. Como a autonomia e a diversidade desses sujeitos deverão ser respeitadas, a batalha pela unidade – uma unidade na diversidade – torna-se não apenas um objetivo tático imediato na luta pelo fim do atual regime, mas também um objetivo estratégico no longo caminho para “elevar a nível superior” a democracia.
Embora no quadro de uma busca permanente da máxima unidade possível é certo que se alterarão – em função das tarefas concretas – a natureza e a amplitude das alianças visadas pelas forças populares. De modo esquemático poderíamos dizer que as tarefas da renovação democrática desdobramse em dois planos principais. Em primeiro lugar, lógica e cronologicamente trata-se de primeiro conquistar e depois consolidar um regime de liberdades fundamentais, para o que se toma necessária uma unidade com todas as forças interessadas nessa conquista e na permanência das regras do jogo a serem implantadas por uma Assembléia Constituinte dotada de legitimidade.
E, em segundo, trata-se de construir as alianças necessárias para aprofundar a democracia no sentido de uma democracia organizada de massas, com crescente participação popular; e a busca da unidade, nesse nível, terá como meta a conquista do consenso necessário para empreender medidas de caráter antimonopolista e antiimperialista e, numa etapa posterior, para a construção em nosso País de uma sociedade socialista fundada na democracia política.
NOTAS
1.- E não apenas a seu método, mas a muitas de suas afirmações literais. Num artigo intitulado Sobre o Dualismo do Poder, escrito em 1917, Lênin observa: “Para conquistar o poder, os operários conscientes devem obter a maioria; até o momento em que não haja violência contra as massas, não há outro modo de chegar ao poder. Não somos blanquistas, não visamos à tomada do poder por parte de uma minoria” (Lênin, Opere Complete. Trad. italiana, Roma, 1958, vol. 24, p. 31).
2. A idéia da “socialização da política” é um dos pontos fortes da reflexão marxista contemporânea na Itália; basta pensar em autores como Umberto Cerroni, Luciano Gruppi e, sobretudo, Pietro Ingrao. Mas já Lênin observava em 1917: “Se todos os homens participarem efetivamente na gestão do Estado, o capitalismo não mais poderá se manter. E o desenvolvimento do capitalismo cria os pressupostos necessários para que ‘todos’ possam efetivamente participar da gestão do Estado” (Lênin, Stato e Rivoluzione. Trad. italiana, Roma, 1963, p. 87).
3. Max Adler, Conselhos Operários e Revolução. Trad, portuguesa, Coimbra, s.d., passim.
4. Cf. Pietro Ingrao, Masse e Potere. Roma, 1977, passim; e Crisi e Terza via. Roma, 1978, em particular pp. 31-46.
5. Talvez não seja justo dizer “marxista”. Pois já Rousseau, no Contrato Social, ao distinguir entre a “vontade de todos” e a “vontade geral”, indicava o momento da hegemonia como elemento integrante essencial da democracia.
6. É interessante constatar que em Hegel — um filósofo da sociedade burguesa pósrevolucionária — essa burocracia já assume explicitamente funções de controle da “sociedade civil”, de “harmonização” dos interesses econômicos particularistas, o que seria impensável no liberalismo clássico da época pré-revolucionária.
7. Não é casual, portanto, que a filosofia adequada ao liberalismo seja o empirismo positivista (de Locke a Popper); aquela própria ao totalitarismo seja o irracionalismo organicista, que afirma uma totalidade sem determinações (basta lembrar a análise de Lukács sobre o movimento que vai do último Schelling a Hitler, em A Destruição da Razão); enquanto a dialética — que afirma uma totalidade concreta, uma “síntese de múltiplas determinações” (Marx) — aparece como a base filosófica da democracia, desde a dialética idealista de Rousseau até aquela materialista de Gramsci ou Lukács.
8. Entre os autores que analisaram aspectos da história brasileira valendo-se do conceito de “via prussiana”, pode-se citar: Carlos Nelson Coutinho, “O Significado de Lima Barreto na Literatura Brasileira”, In: vários autores, Realismo e Anti-Realismo na Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, 1974, pp. 3 e ss.; e “Notas sobre a ‘questão Cultural’ no Brasil”. In: Escrita/Ensaio, n.° 1, 1977, pp. 6-15; J. Chasin, 0 Integralismo de Plínio Salgado. São Paulo, 1978, pp. 621 e ss.; e Luiz Werneck Vianna, Sindicalismo e liberalismo no Brasil, Rio de Janeiro, 1976, em particular pp. 128 e ss.
9. Em seu livro de entrevistas recentemente publicado, Fernando Henrique Cardoso afirma: “Quem busca consenso é regime autoritário. Democracia, não. Democracia é o reconhecimento da legitimidade do conflito, a busca da negociação e a procura de acordo, sempre provisório, em função da correlação de forças” (F. H. Cardoso, Democracia para Mudar, Rio de Janeiro, 1978, p. 22). A negação do valor do consenso é conseqüência necessária da negação da hegemonia; como vimos antes, para o pensamento liberal (assimilado pela social-democracia contemporânea), democracia é sinônimo de pluralismo – de “reconhecimento da legitimidade do conflito” – enquanto a busca do consenso (ou da hegemonia) seria sinônimo de totalitarismo. Não é casual, portanto, que F. H. Cardoso também afirme o seguinte {op. cit., p. 35): “O democratismo radical do Rousseau inspirou historicamente momentos políticos que poderiam ser qualificados como de ‘democracias totalitárias’ ”. Estamos diante de um bom exemplo da diferença entre liberalismo e democracia, entre afirmação abstrata do pluralismo (reconhecimento empírico de uma situação de fato) e afirmação concreta da articulação pluralismo- hegemonia (concepção dinâmico-dialética do movimento social). Porém em vários outros pontos de sua reflexão, F. H. Cardoso supera os limites do liberalismo.