Un punto de encuentro para las alternativas sociales

O novo eixo da luta de classes

Slavoj Zizek

SITUAÇÃO DOS FAVELADOS NO TERCEIRO MUNDO CORRESPONDE EM BOA PARTE À DEFINIÇÃO DO SUJEITO REVOLUCIONÁRIO ANTEVISTA POR KARL MARX

O destino de um velho revolucionário comunista esloveno pode ser exposto como metáfora perfeita das voltas e reviravoltas descritas pelo stalinismo. Em 1943, quando a Itália capitulou, ele comandou uma rebelião de prisioneiros iugoslavos em um campo de concentração em Rab, uma ilha do mar Adriático: sob sua liderança, 200 prisioneiros semimortos de fome desarmaram 2.200 soldados italianos, sem nenhuma ajuda externa. Após a guerra ele foi preso e encarcerado numa “goli otok” (“ilha nua”) da região -um conhecido campo de concentração comunista. Em 1953, ainda nesse campo, ele foi mobilizado, com outros detentos, para erguer um monumento para comemorar o décimo aniversário da rebelião de 1943 em Rab. Ou seja, enquanto era prisioneiro dos comunistas, foi obrigado a erguer um monumento a ele próprio, à rebelião liderada por ele… Se a injustiça (é mais adequado falar dela que da justiça) poética significou alguma coisa, foi o seguinte: não teria o destino desse revolucionário sido aquele da população inteira sob a ditadura stalinista, dos milhões de pessoas que, primeiro, promovem a derrubada histórica do “ancien régime”, na revolução, e, depois, escravizados pelas novas regras, são obrigados a erguer monumentos em homenagem a seu próprio passado revolucionário? Acho que [o historiador britânico] Timothy Garton Ash teria apreciado esse acidente tragicômico -ele se aproxima do espírito de ironia eticamente engajada que permeia os melhores momentos de sua obra. Embora Ash seja, formalmente, meu adversário político, sempre o considerei digno de ser lido, sempre o apreciei por sua abundância de observações precisas e como fonte confiável de informações sobre as vicissitudes da desintegração do comunismo no Leste Europeu. Em “The Free World – America, Europe and the Surprising Future of the West” [O Mundo Livre – América, Europa e o Surpreendente Futuro do Ocidente, Allen Lane, 256 págs., 17,99 libras], seu novo livro, Ash aplicou a mesma abordagem lúcida e amargamente espirituosa ao quebra-cabeças das tensões recentes entre os países-chave da Europa Ocidental, por um lado, e os EUA, do outro. Suas observações sobre as relações entre Reino Unido, França e Alemanha em vários momentos recordam a ironia gentil do romance de costumes, conferindo um novo significado ao tema antigo da chamada “trindade européia”. Em uma cena famosa de “O Fantasma da Liberdade”, de Buñuel, as relações entre o comer e o defecar são invertidas: as pessoas ficam sentadas sobre privadas em volta da mesa, conversando agradavelmente e, quando sentem vontade de comer, perguntam discretamente à criada “onde é aquele lugar, sabe?” e saem para um pequeno cômodo nos fundos da casa, sem se deixarem notar. Então, como complemento a Lévi-Strauss, nos sentimos tentados a sugerir que as fezes também podem funcionar como “matière à penser” [matéria a pensar]: afinal, os três tipos básicos de privada não formam uma espécie de correlação/contraponto ao triângulo culinário levi-straussiano?

Chafurdando em ideologia

Numa privada alemã tradicional, o buraco no qual as fezes desaparecem depois de darmos a descarga fica à frente, de modo que primeiro o cocô fica exposto à nossa frente, para cheirarmos e inspecionarmos para verificar possíveis sinais de doença. Na privada francesa típica, pelo contrário, o buraco fica atrás, ou seja, a idéia é que o cocô desapareça o quanto antes. E a privada americana (anglo-saxã), finalmente, apresenta uma espécie de síntese, uma mediação entre esses dois pólos opostos -a bacia da privada fica cheia de água, de modo que as fezes flutuam sobre ela, visíveis, mas não para serem inspecionadas. Não surpreende que, na famosa discussão sobre diferentes tipos de privadas européias presente no começo de seu livro semi-esquecido, “Medo de Voar”, Erica Jong afirme, em tom zombeteiro, que “as privadas alemãs são realmente a chave dos horrores do Terceiro Reich. Pessoas capazes de construir privadas como essas são capazes de qualquer coisa”. Fica claro que nenhuma dessas versões pode ser explicada em termos puramente utilitários: é claramente discernível uma certa percepção ideológica sobre como o sujeito deve relacionar-se com o excremento desagradável que sai de dentro de seu corpo. Hegel foi um dos primeiros a interpretar a tríade geográfica da Alemanha/França/Inglaterra como expressão de três atitudes existenciais distintas: a profundidade e meticulosidade reflexiva alemã, a pressa revolucionária francesa, o pragmatismo utilitário moderado inglês. Em termos de postura política, essa tríade pode ser lida como conservadorismo alemão, radicalismo revolucionário francês e liberalismo moderado inglês e, em termos do predomínio de uma das esferas da vida social, é a metafísica e poesia alemãs contra a política francesa e a economia inglesa. A referência a privadas permite não só discernir a mesma tríade em ação no campo mais íntimo da realização da função excrementícia mas também visualizar o mecanismo subjacente dessa tríade nas três atitudes diferentes em relação ao excesso excrementício: fascínio contemplativo ambíguo, a tentativa apressada de livrar-se do excesso desagradável o mais rapidamente possível e a abordagem pragmática de tratar o excesso como objeto comum ao qual deve ser dado um fim de maneira apropriada. Assim, é fácil para um acadêmico em uma mesa-redonda afirmar que vivemos num universo pós-ideológico -assim que ele vai ao banheiro após a discussão acalorada, volta a ver-se chafurdando em ideologia.

Neste momento não devemos ter medo de formular a pergunta ingênua: por que não os EUA como polícia global?

As observações de Ash parecem indicar como, hoje, essa trindade está passando por um deslocamento estranho de termos com relação a suas posições: os franceses parecem estar preocupados com a cultura (como salvar seu legado cultural da vulgar americanização global), os ingleses estão concentrados em dilemas políticos (devem ou não ingressar na Europa politicamente unificada etc.) e os alemães -os alemães andam preocupados com a triste inércia de sua economia. Até aqui, tudo bem, então. Entretanto, quando, na segunda metade do livro, Ash passa a fazer um diagnóstico geral das ameaças à liberdade após o fim da Guerra Fria, o tom geral se torna dogmático e simplista, e as soluções propostas soam impossivelmente ingênuas e declaratórias. É verdade que, aqui ou ali, lemos insights e declarações surpreendentes, em se tratando de um autor da posição política de Ash (como, por exemplo, o ataque inequívoco às práticas comerciais injustas dos países desenvolvidos, que estão impelindo os países pobres à ruína). Apesar disso, fica claro que falta a suas propostas positivas uma fundamentação sólida numa análise detalhada da situação mundial. Para começar, ele identifica quatro “novos Exércitos Vermelhos” (sic!), as forças do mal (ou os processos históricos) que representam (ou vão representar) uma ameaça à democracia e à liberdade nas próximas décadas: a situação no Oriente Médio (o conflito israelo-palestino sem solução e a ascensão do fundamentalismo islâmico), a situação no Extremo Oriente (em que a China vai se transformar, no que diz respeito à democracia?), a disparidade entre o Norte rico e o Sul pobre e o impasse ecológico global. Já aqui não podemos deixar de notar como os quatro pontos de preocupação são enumerados com simplicidade: Ash simplesmente faz uma lista de quatro áreas que causam preocupação. Conseqüentemente, as soluções que ele propõe se lêem mais como uma lista de desejos (os países desenvolvidos devem respeitar as regras da concorrência de mercado que querem impor aos países subdesenvolvidos; eles devem fazer mais um esforço concentrado e sério para evitar possíveis catástrofes ecológicas; a crise do Oriente Médio só pode ser resolvida por meio do esforço conjunto dos jogadores-chave, nos EUA e na Europa…) do que como um plano de ação baseado numa análise séria da constelação global.

Anticlímax

Assim, a conclusão do livro forma um anticlímax e não satisfaz as expectativas do projeto declaradas no subtítulo do livro, ou seja, mostrar como o mundo pós-Guerra Fria, apesar de gerar problemas novos e próprios, também abre uma oportunidade única de fazer frente a esses problemas. A percepção que eu tenho das causas dessa deficiência é totalmente “superada”, tingida de marxismo: para mim, está claro que os quatro pontos problemáticos citados por Ash têm suas raízes na dinâmica geral do capitalismo de hoje. Essa ligação fica auto-evidente no caso dos problemas ecológicos e da disparidade econômica entre o Norte e o Sul. A ascensão do fundamentalismo islâmico não é condicionada pela recusa da civilização muçulmana em integrar a dinâmica social do capitalismo? A dinâmica econômica estranha da China não tem suas raízes no fato de ela ser um Estado comunista que aderiu plenamente à economia capitalista? Assim, a questão deveria ser formulada em um nível mais generalizado: em que pé estamos com relação ao capitalismo global? Esses pontos problemáticos são sintomas de uma falha estrutural inscrita no próprio cerne da máquina capitalista ou são meros acidentes que poderiam ser mantidos sob controle, quando não resolvidos? Isso não significa que devamos pura e simplesmente rejeitar o diagnóstico e as propostas de Ash por meio de uma réplica marxista impolida, dizendo que “ele não leva em conta a totalidade dialética da situação”. Existem pontos nos quais o sofrimento humano, em sua singularidade, alcança um nível no qual a referência fácil a uma totalidade maior vira cinismo. Dentro desse espírito, o único argumento válido a favor da Guerra do Iraque foi evocado repetidas vezes por Christopher Hitchens: não devemos nos esquecer de que a maioria dos iraquianos é, concretamente, vítima de Saddam e ficaria realmente feliz e aliviada em ver-se livre dele. Saddam foi uma catástrofe tão grande para seu país que uma ocupação americana, fosse qual fosse a forma que assumisse, poderia parecer à população iraquiana uma perspectiva muito mais animadora, no que dizia respeito à sua sobrevivência diária e seus níveis de medo. Não estamos falando aqui em “levar a democracia ocidental ao Iraque”, mas apenas em nos livrar do pesadelo chamado Saddam. Para essa maioria da população, a cautela expressa por liberais ocidentais só pode se configurar como uma hipocrisia profunda -será que esses liberais realmente se preocupam com o sentimento da população do Iraque? Podemos apresentar aqui um argumento ainda mais geral: o que dizer dos esquerdistas ocidentais pró-Fidel Castro, que desprezam aqueles que os próprios cubanos designam como “gusanos” (vermes), ou seja, os cubanos que deixaram o país? Entretanto, mesmo com toda a simpatia do mundo pela Revolução Cubana, que direito tem um típico esquerdista ocidental de classe média de desprezar um cubano que decidiu deixar Cuba não por desencanto político, mas também em razão da pobreza (tão grande que envolve a fome concreta)? Nesse mesmo veio, eu mesmo me recordo -no início dos anos 1990- de dezenas de esquerdistas ocidentais que, orgulhosamente, me atiraram na cara o fato de que, para eles, a Iugoslávia ainda existia e me criticaram por ter traído a oportunidade única de manter a Iugoslávia -acusação à qual eu sempre respondia que ainda não estava disposto a viver minha vida de maneira a não desiludir esquerdistas ocidentais. Existem poucas coisas mais dignas de desprezo, poucas atitudes mais “ideológicas” (se esse termo possui algum significado hoje, deve ser aplicado aqui), do que um catedrático esquerdista ocidental desprezando com arrogância (ou, ainda pior, “compreendendo” de maneira paternalista) um europeu oriental de um país comunista que anseia pela democracia liberal ocidental e por alguns bens de consumo.

Pressão bilateral

Neste momento não devemos ter medo nem mesmo de formular a pergunta ingênua: por que não os EUA como polícia global? A situação do pós-Guerra Fria de fato exigia alguma potência global para preencher o vazio. O problema é outro: basta recordar a percepção comum que se tem dos EUA como o “novo Império Romano”. O problema dos EUA de hoje não é que ele seja um novo império global, mas que não o seja, isto é, embora faça de conta que o é, o país continua a agir como nação-Estado, defendendo implacavelmente seus interesses próprios. É como se a diretriz da política norte-americana recente fosse uma inversão esdrúxula do slogan muito conhecido dos ecologistas: “Pense globalmente, aja localmente”. Essa contradição é mais bem exemplificada pela pressão bilateral que os EUA exerceram sobre a Sérvia em 2003: ao mesmo tempo, os representantes americanos exigiam do governo sérvio que entregasse suspeitos criminosos de guerra ao tribunal de Haia (seguindo a lógica do império global, que exige uma instituição judiciária global, transnacional) e, simultaneamente, que ele assinasse com os EUA o tratado bilateral que obrigaria a Sérvia a não entregar pessoas a nenhuma instituição internacional (ou seja, ao mesmo tribunal de Haia). Não surpreende que a reação sérvia fosse de fúria perplexa. O paradoxo notável contido nessa questão é que, com isso, os EUA rejeitaram a jurisdição de um tribunal que foi constituído com o apoio pleno (e o voto) dos próprios EUA! Assim, quando, falando do tribunal de Haia, Ash (em um ensaio publicado em alemão no “Sueddeutsche Zeitung”) fez a afirmação patética de que “de hoje em diante nenhum Fuhrer ou Duce, nenhum Pinochet, Idi Amin ou Pol Pot deve poder sentir-se a salvo da intervenção da justiça popular, protegido pelos portões do palácio da soberania nacional”, devemos simplesmente tomar nota daquilo que está faltando nesta lista de nomes, que, fora a dupla padrão formada por Hitler e Mussolini, contém três ditadores do Terceiro Mundo.
Onde está pelo menos um nome dos sete grandes -alguém como Kissinger, por exemplo?

A tortura também não está sendo “terceirizada”, deixada a cargo de aliados terceiro-mundistas dos EUA?

Como Ash bem sabe, a mesma lógica da exceção também se aplica às relações econômicas: em Cancun, em setembro de 2003, os EUA insistiram na manutenção dos subsídios aos plantadores de algodão, com isso violando seu próprio conselho sacrossanto aos países do Terceiro Mundo, aos quais diz que devem suspender os subsídios estatais e abrir-se ao mercado. E será que o mesmo não se aplica até mesmo à tortura? A estratégia econômica exemplar do capitalismo atual é a terceirização -ou seja, repassar o processo “sujo” de produção material (mas também a publicidade, o design, a contabilidade etc.) a outras empresas, por meio de subcontratos.
Dessa maneira é fácil fugir das regras ecológicas e de saúde: a produção é feita, por exemplo, na Indonésia, onde os regulamentos ambientais e de saúde são muito menos rígidos do que no Ocidente, e a empresa global ocidental que é dona do logotipo pode isentar-se de responsabilidade pelas violações de outra empresa.
Não está ocorrendo algo homólogo a isso com relação à tortura? A tortura também não está sendo “terceirizada”, deixada a cargo de aliados terceiro-mundistas dos EUA, que podem realizá-la sem preocupar-se com problemas legais ou protestos públicos? E tal terceirização não foi proposta explicitamente pelo jornalista Jonathan Alter na “Newsweek” [em 5/11/2001], imediatamente após o 11 de Setembro? Depois de afirmar que “não podemos legalizar a tortura -ela é contrária aos valores americanos”, ele concluiu que “teremos que pensar em transferir alguns suspeitos a nossos aliados menos escrupulosos, mesmo que isso seja uma hipocrisia. Ninguém falou que isso seria um processo limpinho”. É desse modo que, hoje, a democracia do Primeiro Mundo funciona cada vez mais por meio da “terceirização” para outros países de seu lado oculto e sujo.
Essa inconsistência tem raízes geopolíticas profundas. Países como a Arábia Saudita e o Kuait são monarquias conservadoras, mas, em termos econômicos, aliados dos EUA plenamente integrados ao capitalismo ocidental. Aqui os EUA têm um interesse muito preciso e simples: para que possa contar com as reservas petrolíferas desses países, é preciso que eles permaneçam não democráticos. Ou seja, é seguro apostar que, se houvesse eleições democráticas na Arábia Saudita ou no Iraque, elas conduziriam ao poder um regime nacionalista pró-islâmico que se elegeria com base em atitudes anti-americanas.

As favelas são o verdadeiro sintoma de slogans como “desenvolvimen to”, “modernização” e “mercado mundial”

Existe aqui uma ironia histórica de cujo peso Ash, a meu ver, não se deu conta. Na década de 1980, Jeanne Kirkpatrick [que foi embaixadora dos EUA na ONU] elaborou a (então) notória distinção entre regimes “autoritários” e “totalitários”, que foi usada para justificar a política americana de colaborar com ditadores de direita e, ao mesmo tempo, tratar regimes comunistas com muito mais dureza. Segundo a distinção feita, os ditadores autoritários são governantes pragmáticos que se preocupam com seu poder e riqueza e vêem questões ideológicas com indiferença, mesmo que, superficialmente, afirmem alinhar-se a alguma causa importante. Contrastando com eles, os líderes totalitários seriam fanáticos que crêem em sua ideologia e se dispõem a arriscar tudo por seus ideais.
Assim, enquanto é possível lidar com governantes autoritários que reagem de maneira racional e previsível a ameaças materiais e militares, os líderes totalitários são muito mais perigosos e precisam ser confrontados de maneira direta. A ironia é que essa distinção cobre à perfeição o que deu errado na ocupação americana do Iraque: Saddam Hussein era um ditador autoritário corrupto que buscava poder e era guiado por considerações pragmáticas brutais (que o levaram a colaborar com os Estados Unidos na década de 1980), e a principal conseqüência da intervenção americana vem sendo a de gerar uma oposição “fundamentalista”, muito mais radical, que exclui de antemão a possibilidade de qualquer acordo pragmático. De maneira geral, a limitação da análise feita por Ash consiste em sua incapacidade de ver como os elementos que ele condena (o desprezo irredutível pelo ambiente, a hipocrisia dos dois pesos e duas medidas impostos pelas superpotências ao mercado mundial etc.) são produtos da própria dinâmica social que sustenta seu papel de exportadores da democracia e guardiães dos direitos humanos universais. É verdade que, com frequência, não podemos deixar de nos chocar com a excessiva indiferença em relação ao sofrimento, mesmo -e especialmente- quando esse sofrimento é amplamente noticiado pela mídia e condenado -como se fosse o próprio ultraje diante do sofrimento que nos transformasse em espectadores imobilizados e fascinados. De maneira mais geral, devemos enxergar como problemática a política humanitária muito despolitizada dos “direitos humanos”, como ideologia do intervencionismo militar que promove objetivos econômico-políticos específicos. É claro que esse humanitarismo se apresenta como pura defesa dos inocentes e fracos contra o poder, como defesa pré-política do indivíduo contra os imensos e despóticos aparatos da cultura, do Estado, da guerra, dos conflitos étnicos, do tribalismo e do patriarcado. Mas, como observou há pouco [a escritora] Wendy Brown, a questão é a seguinte: “Que tipo de politização acionam aqueles que intervêm em defesa dos direitos humanos e contra os poderes aos quais se opõem? Será que representam uma fórmula de justiça diferente ou será que se opõem aos projetos de justiça coletivos?”. Digamos, por exemplo, que é claro que a derrubada de Saddam Hussein pelos EUA, legitimada na medida em que pôs fim ao sofrimento da população iraquiana, não apenas foi motivada por outros interesses político-econômicos (o petróleo) mas também se baseou numa idéia determinada sobre as condições políticas e econômicas (democracia liberal ocidental, garantias da propriedade privada, inclusão do país na economia global de mercado etc.) que deveriam abrir à população iraquiana a perspectiva de liberdade. Assim, a política puramente humanitária e antipolítica de apenas prevenir o sofrimento equivale, na prática, à proibição implícita de elaborar um projeto coletivo de transformação sociopolítica. O que acontece, então, com os direitos humanos quando eles são reduzidos aos direitos daqueles que são excluídos da comunidade política, reduzidos à “vida nua” -ou seja, quando se tornam sem utilidade, já que são os direitos daqueles que, justamente, não têm direitos, daqueles que são tratados como não humanos? Com relação a essa questão, [o filósofo francês] Jacques Rancière propôs uma inversão dialética importante: “Quando deixam de ter utilidade para você, você faz como fazem as pessoas caridosas com suas roupas velhas: doam-nas aos pobres. Os direitos que parecem ser inúteis em seus lugares são enviados ao exterior, juntamente com roupas e medicamentos, para pessoas carentes de medicamentos, roupas e direitos… Os direitos humanos se tornam os direitos daqueles que não têm direitos, os direitos de seres humanos reduzidos ao mínimo, sujeitos à repressão desumana e a condições de vida inumanas. Tornam-se direitos humanitários, os direitos daqueles que não podem implementá-los, as vítimas da negação absoluta do direito. Apesar disso, eles não são destituídos de significado. Nomes e lugares políticos nunca se tornam simplesmente vazios. O vazio é preenchido por alguém ou outra coisa… Se os que sofrem repressão inumana não conseguem implementar os direitos humanos que constituem seu último recurso, então outros precisam herdar seus direitos, para que os implementem em seu lugar. É a isso que chamamos “o direito à intervenção humanitária” -o direito que alguns países se arrogam de agir em suposto benefício de populações vitimizadas, freqüentemente contrariando os conselhos das próprias organizações humanitárias. O “direito à intervenção humanitária” pode ser descrito como uma espécie de “devolução ao remetente’: o direito em desuso que tinha sido enviado aos destituídos de direitos é devolvido a seus remetentes”. A referência à fórmula de comunicação proposta por Lacan (na qual o remetente recebe de volta do destinatário sua própria mensagem em forma invertida, ou seja, verdadeira) é pontual: no discurso reinante do intervencionismo humanitário, o Ocidente desenvolvido está, de fato, recebendo de volta do Terceiro Mundo vitimizado sua própria mensagem em sua forma verdadeira. E é também aqui que devemos buscar os candidatos a “indivíduo universal”, um grupo determinado cujo destino hoje pode ser visto como representativo da injustiça do mundo atual: os palestinos, os prisioneiros em Guantánamo etc. A Palestina é hoje sede de um acontecimento potencial precisamente porque todas as soluções “pragmáticas” padronizadas para a crise do Oriente fracassaram repetidas vezes, de modo que a invenção utópica de um espaço novo é a única opção “realista”.

Fato crucial

Mas existe uma instância privilegiada nessa série: os moradores das favelas nas novas megalópoles. O crescimento explosivo das favelas nas últimas décadas, especialmente nas megalópoles do Terceiro Mundo, desde a Cidade do México e outras capitais latino-americanas até a África (Lagos) e Índia, China, Filipinas e Indonésia, talvez constitua o fato geopolítico crucial de nossos tempos. O caso de Lagos, maior nodo no corredor de favelas, com 70 milhões de habitantes, que se estende de Abidjan [capital da Costa do Marfim] a Ibadan [na Nigéria], é exemplar: ninguém nem sequer sabe o tamanho de sua população. Oficialmente ela é dada como sendo de 6 milhões de habitantes, mas a maioria dos especialistas a estima em 10 milhões. Como em algum momento muito próximo a população urbana do mundo vai superar a população rural (é possível que, dada a imprecisão dos censos realizados no Terceiro Mundo, isso já tenha acontecido) e como os favelados vão compor a maioria da população urbana, não estamos tratando de um fenômeno marginal, de maneira nenhuma. Estamos assistindo ao crescimento acelerado da população fora do controle estatal, vivendo em condições metade fora da lei, terrivelmente carente de formas mínimas de auto-organização. Embora sua população seja composta de trabalhadores marginalizados, funcionários públicos desempregados e ex-camponeses, as favelas não formam um simples excedente: elas são incorporadas à economia global de diversas maneiras, com alguns de seus moradores trabalhando como assalariados informais ou autônomos, sem acesso à saúde ou à previdência (a principal fonte de aumento das favelas é a inclusão dos países do Terceiro Mundo na economia global, com importações alimentares baratas dos países do Primeiro Mundo, devastando as agriculturas locais). Eles constituem o verdadeiro “sintoma” de slogans como “desenvolvimento”, “modernização” e “mercado mundial”. Não surpreende que a ideologia dominante nas favelas seja a do cristianismo pentecostalista, com seu misto de fundamentalismo carismático movido a milagres e curas espetaculares e de programas sociais como cozinhas comunitárias e programas comunitários de atendimento às crianças e aos idosos. Embora, é claro, devamos resistir à tentação fácil de elevar e idealizar os favelados, enxergando-os como nova classe revolucionária, também devemos, como propõe [o filósofo Alain] Badiou, enxergar as favelas como um dos poucos “lugares eventais” da sociedade contemporânea -pois os favelados são literalmente uma coleção daqueles que formam a “parte de parte alguma”, o elemento “excedente” da sociedade, a parte excluída dos benefícios da cidadania, os desenraizados e despossuídos, aqueles que, de fato, “não têm nada a perder, exceto as correntes que os prendem”.

Dupla liberdade

De fato, é surpreendente quantas características dos favelados correspondem à boa e velha definição marxista do sujeito proletário revolucionário: eles são “livres” no duplo sentido do termo, mais ainda do que o proletariado clássico (“libertos” de todos os laços substanciais; obrigados a conviver estreitamente; jogados em uma situação na qual precisam criar alguma maneira de conviver e, ao mesmo tempo, privados de qualquer apoio às formas de vida tradicionais, às formas herdadas de vida religiosa ou étnica). Os favelados constituem a contrapartida da outra classe emergente recente, a chamada “classe simbólica” (formada por gerentes, jornalistas, relações-públicas, acadêmicos, artistas etc.), que também é desenraizada e se enxerga como sendo diretamente universal (um acadêmico novaiorquino tem mais em comum com um acadêmico esloveno do que com negros que vivem no Harlem, a meio quilômetro de distância de seu campus universitário). Será esse o novo eixo da luta de classes ou será que a “classe simbólica” é inerentemente dividida, de tal modo que se possa fazer uma aposta emancipatória na coalizão entre favelados e parte “progressista” da classe simbólica? O que deveríamos estar buscando são os sinais de novas formas de consciência social que vão emergir dos coletivos de favelas -serão eles as sementes do futuro. E isso nos traz de volta ao título -e ao projeto subjacente- do livro de Ash: nossa maior esperança de um mundo realmente “livre” está no universo sombrio e triste das favelas.

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Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de “Bem-Vindo ao Deserto do Real” (Boitempo). Ele escreve na seção “Autores”, do Mais!.

Tradução de Clara Allain.

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