Un punto de encuentro para las alternativas sociales

Mais-valia e mais-gozar

Slavoj Zizek

Eis aqui a diferença do marxismo: na perspectiva marxista predominante, o olhar ideológico e um olhar parcial, que deixa escapar a totalidade das relações sociais, ao passo que, na perspectiva lacaniana, a ideologia designa, antes, a totalidade empenhada em apagar os vestígios de sua própria impossibilidade. Essa diferença corresponde à que distingue as noções de fetichismo em Freud e em Marx: no marxismo, o fetiche oculta a rede positiva de relações sociais, ao passo que, em Freud, o fetiche oculta a falta (“castração”) em torno da qual se articula a rede simbólica.

Na medida em que concebemos o Real como aquilo que “sempre retorna ao mesmo lugar”, podemos deduzir outra diferença não menos crucial. Do ponto de vista marxista, o método ideológico por excelência é o da “falsa” eternização e/ou universalização: um estado que depende de uma conjuntura histórica concreta afigura-se um traço eterno e universal da condição humana; o interesse de uma classe particular disfarça-se como um interesse humano universal… e a meta da “crítica da ideologia” é denunciar essa falsa universalidade, identificar por trás do homem em geral o indivíduo burguês, por trás dos direitos universais do homem, a forma que possibilita a exploração capitalista, por trás*da “família nuclear” como constante trans-histórica, uma forma historicamente especificada e limitada de relações de parentesco, e assim por diante.

Na perspectiva lacaniana, devemos modificar os termos e apontar como método ideológico mais “astuto” o oposto diametral da eternização: a historicização ultra-rápida. Tomemos um dos lugares-comuns da crítica marxista-feminista à psicanálise, a idéia de que sua insistência no papel crucial do complexo de Édipo e do triângulo da família nuclear transforma uma forma historicamente condicionada de família patriarcal num traço da condição humana universal: não será esse esforço de historicizar o triângulo familiar precisamente uma tentativa de eludir o “núcleo sólido” que se anuncia através da “família patriarcal” — o Real da Lei, a rocha da castração? Em outras palavras, se a universalização ultra-rápida produz uma Imagem quase universal, cuja função é cegar-nos para sua determinação sócio-simbólica histórica, a historicização ultra-rápida cega-nos para o verdadeiro núcleo que retorna como o mesmo através de diversas historicizações/simbolizações.

O mesmo se dá com um fenômeno que aponta com muita exatidão o avesso “perverso” da civilização do século XX: os campos de concentração. Todas as diferentes tentativas de ligar esse fenômeno a uma imagem concreta (“Holocausto”, “Gulag” etc), de reduzi-lo a um produto de uma ordem social concreta (fascismo, stalinismo etc), que são elas senão um punhado de tentativas de eludir o fato de estarmos lidando, nesse fenômeno, com o “real” de nossa civilização, que retorna como o mesmo núcleo traumático em todos os sistemas sociais? (Não devemos esquecer que os campos de concentração foram uma invenção da Inglaterra “liberal”, que data da Guerra dos Bôeres; que também foram usados nos EUA para isolar a população japonesa, e assim por diante.)

O marxismo, portanto, não conseguiu levar em conta ou chegar a um acordo com o objeto-a-mais, com o resto do Real que escapa à simbolização — fato que é ainda mais surpreendente ao lembrarmos que Lacan pautou sua noção do mais-gozar na idéia marxista da mais-valia. A prova de que a mais-valia marxista efetivamente anuncia a lógica do objeto pequeno a lacaniano, como encarnação do mais-gozar, já é fornecida pela fórmula decisiva que Marx utilizou, no terceiro volume de O capital, para designar o limite lógico-histórico do capitalismo: “o limite do capital é o próprio capital, isto é, o modo de produção capitalista”.

Essa fórmula pode ser lida de 4uas maneiras. A primeira, a leitura historicista-evolucionista habitual, concebe-a, de acordo com o lamentável paradigma da dialética das forças produtivas e das relações de produção, como o modelo do “conteúdo” e da “forma”. Esse paradigma segue aproximadamente a metáfora da  cobra, que troca periodicamente de pele, quando esta fica apertada demais: postula-se como ímpeto último do desenvolvimento social — como sua constante “natural” e “espontânea” (por assim dizer) — o crescimento incessante das forças produtivas (em geral, reduzidas ao desenvolvimento técnico); esse cresci mento “espontâneo” é então seguido, com maior ou menor grau de atraso, pelo momento inerte e dependente, a relação de produção. Assim, temos épocas em que as relações de produção estão de acordo com as forças produtivas; depois, essas forças se desenvolvem e ficam grandes demais para sua “roupagem social”, o contexto das relações; esse contexto torna-se um obstáculo a seu desenvolvimento ulterior, até que a revolução social torna a coordenar as forças e as relações, substituindo as antigas relações por novas, que correspondem ao novo estado das forças.

Se concebermos por esse ponto de vista a fórmula do capital como sendo o limite dele mesmo, ela significará, simplesmente, que a relação de produção capitalista, que, a princípio, possibilita o rápido desenvolvimento das forças produtivas, torna-se, a certa altura, um obstáculo para seu desenvolvimento ulterior: que essas forças tornam-se maiores que seu arcabouço e exigem uma nova forma de relações sociais.

O próprio Marx, é claro, está longe dessa idéia evolucionista simplista. Para nos convencermos disso, basta examinar as passagens de O capital em que ele aborda a relação entre a subordinação formal e a subordinação real do processo de produção ao capital: a subordinação formal precede a real; primeiro o capital  subordina o processo de produção tal como este é encontrado (artesãos etc) e só  depois modifica passo a passo as forças produtivas, moldando-as de maneira a  criar uma correspondência. Ao contrário da idéia simplista mencionada anteriormente, portanto, é a forma da relação de produção que impulsiona o desenvolvimento das forças produtivas — isto é, de seu “conteúdo”.

Tudo de que precisamos para tornar impossível a leitura evolucionista simplista da fórmula “o limite do capital é o próprio capital” é fazer uma pergunta  muito simples e óbvia: como definimos, exatamente, o momento — ainda que  apenas ideal — em que a relação de produção capitalista torna-se um obstáculo  ao desenvolvimento adicional das forças produtivas? Ou então, o avesso da mesma pergunta: quando podemos falar de concordância entre as forças produtivas  e as relações de produção no modo de produção capitalista? Uma análise rigorosa leva a uma única resposta possível: nunca.

É exatamente nisso que o capitalismo difere de outros modos de produção  anteriores: nestes, podemos falar de períodos de “concordância” em que o pro  cesso da produção e reprodução sociais avança como um sereno movimento circular, e de períodos de convulsão em que a contradição entre as forças e a relação  se agrava; já no capitalismo, essa contradição, a discordância forças/relação, está  contida em seu próprio conceito (na forma da contradição entre o modo de produção social e o modo de apropriação privado individual). É essa contradição inter  na que obriga o capitalismo a uma permanente reprodução ampliada — ao desenvolvimento incessante de suas próprias condições de produção, em contraste  com os modos de produção anteriores, onde, ao menos em seu estado “normal”,  a (re)produção se dá como um movimento circular.

Se assim é, a leitura evolucionista da fórmula do capital como sua própria  limitação é inadequada: a questão não é que, num certo momento de seu desenvolvimento, a estrutura da relação de produção comece a constranger o desenvolvimento adicional das forças produtivas; a questão é que é esse próprio limite  imanente, essa “contradição interna”, que impele o capitalismo a um desenvolvi  mento permanente. O estado “normal” do capitalismo é o revolucionamento permanente de suas próprias condições de existência: desde o começo, o capitalismo  “apodrece”, é marcado por uma contradição mutuante, pela discórdia, por uma  falta de equilíbrio imanente: é exatamente por isso que ele se modifica e se desenvolve sem parar — o desenvolvimento incessante é sua única maneira de resolver  reiteradamente, de entrar em acordo com seu desequilíbrio fundamental e constitutivo, a “contradição”. Longe de ser restritivo, portanto, seu limite é o próprio  impulso de seu desenvolvimento. Nisso reside o paradoxo característico do capitalismo, seu último recurso: o capitalismo é capaz de transformar seu limite, sua  própria impotência, na fonte de seu poder — quanto mais ele “apodrece”, quanto mais se agrava sua contradição imanente, mais ele tem que se revolucionar  para sobreviver.

É esse paradoxo que define o mais-gozar: não se trata de um excedente que  simplesmente se ligue a um gozo “normal”, fundamental, porque o gozo como tal  só emerge nesse excedente, é constitutivamente um “excesso”. Se retirarmos o excedente, perderemos o próprio gozo, do mesmo modo que o capitalismo, que só  pode sobreviver revolucionando incessantemente suas condições materiais, deixa de existir quando “permanece o mesmo”, quando atinge um equilíbrio in  terno. É essa, pois, a homologia entre a mais-valia — a “causa” que aciona o  processo de produção capitalista — e o mais-gozar, o objeto-causa do desejo.  Porventura a topologia paradoxal da movimentação do capital, do bloqueio fundamental que se resolve e se reproduz através da atividade frenética, do poder  excessivo como a própria forma da aparência de uma impotência básica — por  ventura essa passagem imediata, essa coincidência entre o limite e o excesso, entre a falta e o excedente, não será precisamente a do objeto pequeno a lacaniano,  do resto que encarna a falta constitutiva fundamental?

De tudo isso, é claro, Marx “sabe perfeitamente, mas…”: mas, na formulação  crucial do Prefácio à Crítica da economia política, ele procede como se não soubesse, descrevendo a própria passagem do capitalismo para o socialismo em termos  da já mencionada dialética vulgar das forças produtivas e da relação de produção: quando as forças ultrapassam um certo grau, a relação capitalista torna-se um  obstáculo a seu desenvolvimento futuro; essa discordância acarreta a necessidade  da revolução socialista, cuja função é tornar a coordenar as forças com a relação,  ou seja, estabelecer relações de produção que possibilitem o desenvolvimento intensificado das forças produtivas como o fim-em-si do processo histórico.

Como podemos deixar de detectar nessa formulação o fato de que Marx não  conseguiu lidar com os paradoxos do mais-gozar? E a irônica vingança da história por esse fracasso é que, hoje em dia, existe uma sociedade que parece corresponder perfeitamente a essa dialética evolucionista vulgar das forças e da relação: o “socialismo real”, uma sociedade que se legitima referindo-se a Marx. Acaso já não é um lugar-comum dizer que o “socialismo real” possibilitou a industrialização rápida, mas que, tão logo as forças produtivas atingiram um certo nível de desenvolvimento (geralmente designado pela vaga expressão “sociedade pós-industrial”), as relações sociais “socialistas reais” começaram a restringir seu crescimento ulterior?

Um Mapa da Ideologia

Como Marx Inventou o Sintoma?

MAIS-VALIA E MAIS-GOZAR (pp. 327 – 330)

Slavoj Zizek

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