A guerra entre Portugal e Castela nos fins do Séc. XIV não é apenas uma guerra entre dois Estados, ou mais uma guerra entre dois Estados. Da parte dos portugueses é uma guerra nacional e popular, uma guerra que mergulha as suas raízes nas lutas sociais, nas lutas de classes que se vinham desenvolvendo e intensificando ao longo do Séc. XIV. Estava-se processando o declínio do sistema feudal causado, fundamentalmente, pela liquidação da servidão da gleba nos Séculos XIII e XIV e pelo surgimento da pequena produção baseada no trabalho do proprietário dos meios de produção e da produção baseada no trabalho assalariado. A expansão dos concelhos está ligada ao desenvolvimento desta produção: é sua consequência e é seu estímulo, na medida, por exemplo, em que favorecia a libertação dos servos da gleba. Os servos da gleba dão lugar aos pequenos produtores formando-se, depois, por um lado, uma classe de camponeses ricos, a burguesia rural, e, por outro, uma classe de camponeses sem terra que fornecem trabalho assalariado. Com a produção mercantil simples, com a pequena produção baseada no trabalho assalariado aumenta a produção em geral, desenvolvendo-se o comércio interior. Surge uma classe de comerciantes que cresce em número e em poder económico. Por outro lado, o desenvolvimento do comércio externo (que já existia quando da formação de Portugal) conduz ao aparecimento de uma classe de ricos mercadores. Sendo o comércio externo quase todo feito por mar desenvolve-se a Marinha Mercante e, a construção naval. Nos centros urbanos do litoral forma-se uma burguesia rica, que se organiza na defesa dos seus interesses, e que vão influenciando cada vez mais a política portuguesa. Os portos, em particular Lisboa e Porto, tornam-se centros de poder da burguesia comercial-marítima. Paralelamente a este progresso, na produção e na troca de produtos, desenvolve-se a produção artesanal, cresce a classe dos mesteirais, cujo papel na Revolução de 1383-85 virá, em certos momentos, a ser decisivo. Com o desenvolvimento da produção mercantil e do comércio os burgueses concentram na sua mão grande riqueza. Com o seu crescente poder económico a burguesia ligada ao comércio marítimo torna-se o principal inimigo da classe senhorial e vem a estar em condições de, em unidade com as outras classes não senhoriais, disputar o poder político à nobreza latifundiária. O surgimento das novas classes e camadas sociais, o crescente poder económico da burguesia, cujos interesses se opõem aos da classe senhorial, exercem pressão sobre o poder real e obrigam a que os privilégios da nobreza e do clero vão sendo reduzidos ao longo dos Séculos XIII e XIV. Contudo, a natureza do Estado não muda com as conquistas que a burguesia vai alcançando. A nobreza latifundiária e militar, de que o rei é o primeiro senhor, continua a ser a classe dominante, continua a dispor da direcção política do Estado. D. Fernando é obrigado a promulgar leis de protecção ao comércio e à navegação, é obrigado a promulgar, nomeadamente, a Lei das Sesmarias, o que tem o significado de grandes conquistas da burguesia urbana e rural. Amadurecem as condições para a disputa do poder político à nobreza por parte da burguesia. Apercebendo-se do perigo que corria e sentindo que não possuía forcas para, por si só, dominar a contestação aos seus privilégios e ao seu poder, a nobreza portuguesa vinha procurando o apoio da nobreza castelhana à qual se unia (sem atender aos riscos que essa união implicaria para a independência nacional) com. o fim de salvaguardar e manter os seus privilégios, de reforçar o seu poder e de contrabater a burguesia ascendente. Foi com este objectivo que se celebrou em 1383 o casamento da infanta D. Beatriz, filha única de D. Fernando e de D. Leonor Teles, com o rei de Castela. Antes, em 1376 e 1380, o casamento da infanta com príncipes castelhanos estivera para ser realizado, prevendo-se já então a sucessão de um rei castelhano no trono de Portugal. O próprio casamento de D. Fernando com D. Leonor Teles fora preparado pela nobreza portuguesa em aliança com a de Castela com vista a influenciar mais directamente as decisões do rei no sentido favorável aos interesses da nobreza portuguesa. E de tal modo assim foi que os burgueses e artesãos se revoltaram em vários pontos do País. O alfaiate Fernão Vasques e os seus companheiros, à frente de três mil mesteirais, besteiros e homens de pé, em 1371, corajosamente, afirmaram o seu protesto ao rei pelo seu casamento com D. Leonor Teles; eles haviam compreendido o significado político desse matrimónio preparado pela nobreza portuguesa em conivência com a de Castela. Essa revolta dos mesteirais, exprimindo a oposição de interesses entre as classes populares e a nobreza feudal representou uma tal ameaça ao poder feudal que o rei mandou degolar Fernão Vasques e muitos dos seus companheiros. A propósito do casamento de D. Fernando, Fernão Lopes diz que os populares se juntavam criticando acerbamente os privados do rei e os grandes da terra que lho consentiam. Nos últimos meses da vida de D. Fernando acentuou-se junto do rei a influência da nobreza mais reaccionária o que fez crescer a tensão social e contribuiu para criar as condições para a insurreição de Lisboa, poucos dias depois da morte do rei. A morte do rei precipitou os acontecimentos ao colocar o problema da sucessão. A causa imediata da revolução burguesa é a tentativa por parte da nobreza de entregar o Governo de Portugal à monarquia castelhana. A revolução toma desde logo um carácter nacional, social e popular. A insurreição de Lisboa é secundada por revoltas populares por todo o País (sobretudo a Sul do Tejo) da burguesia rural, dos camponeses, dos assalariados rurais, dos «ventres ao sol». A luta pela independência nacional funde-se com a luta contra os privilégios da nobreza e pelo poder político, pois a classe dominante à qual era disputado este poder político era a mesma que, para conservar as suas posições, havia provocado a intervenção da nobreza de Castela contra os interesses populares e estava disposta a entregar o Governo de Portugal à monarquia castelhana. A revolução burguesa identifica-se, assim, com a luta pela independência nacional. A revolução tem um nítido carácter de classe. Dois campos se afrontam: o da nobreza territorial latifundiária e o das classes não senhoriais: a burguesia urbana e rural, os mesteirais, os pequenos proprietários camponeses, os camponeses sem terra, nesse momento unidos contra o mesmo inimigo, a nobreza portuguesa e castelhana, ultrapassando assim as próprias e naturais contradições de interesses que havia entre essas classes sociais não senhoriais. Foram estas forças que se defrontaram em Aljubarrota. O facto de, do lado português, sempre ter havido nobres ao lado das classes populares não altera o carácter do afrontamento de classes. Em todas as revoluções houve sempre elementos da classe dominante que tomaram o partido das classes em ascensão, progressistas, que se opõem ao poder dessas mesmas classes dominantes. Era restrito o número de nobres que estava com Portugal. E pertenciam aos estratos inferiores da nobreza. Eram dos menos abastados. Não podemos, pois, afirmar que do lado português, em Aljubarrota, se encontravam todas as classes sociais defendendo a independência nacional. O facto de, depois da Revolução de 1383-85, a nova nobreza ter ficado na posse de vastos domínios, domínios cuja extensão total era tão grande como a que antes de 1383 possuía a antiga nobreza latifundiária, não invalida a afirmação de que em Aljubarrota a nobreza, como classe, não estava do lado de Portugal. Estava, sim, um reduzido número de nobres que eram chefes militares das tropas populares. Os comandos militares, os quadros superiores eram, regra geral, nobres que, como se sabe, naquele tempo, eram militares profissionais. O que aconteceu foi que esses poucos nobres, em consequência dos êxitos na guerra e em virtude da posição que ocupavam no exército, ascenderam à grande propriedade territorial, no lugar daqueles que se puseram ao lado de Castela. Com efeito, foi com esses nobres leais a Portugal que, dadas as condições objectivas e subjectivas da época, foi reconstituída a grande parte dos domínios senhoriais. O caso mais típico é o de Nuno Alvares Pereira que ascendeu ao primeiro plano da classe senhorial e de tal modo que os seus domínios atingiram uma extensão igual à dos domínios que anteriormente possuíam muitos dos grandes nobres tomados em conjunto. É Fernão Lopes que nos diz que em resultado da grande crise surgiu uma «sétima idade em que se levantou um mundo novo e nova geração de gentes, aparecendo fidalgos de origem plebeia e erguendo–se pequenos aristocratas à primeira linha da nobreza». Repare-se que, para Fernão Lopes, o aparecimento de um mundo novo não estava ligado, como para nós, hoje, a uma profunda transformação nas relações de produção e distribuição entre as diferentes classes sociais. As condições objectivas da vida da sociedade portuguesa em fins do séc. XIV não eram de molde a poder colocar à consciência da burguesia e das classes populares a necessidade de uma modificação radical das estruturas socioeconómicas, que liquidasse o poder da classe senhorial. Só séculos mais tarde essa questão será posta pelas burguesias dos diferentes países e com grandes intervalos de tempo entre si. Com efeito, podemos verificar que nos finais do séc. XIV a Revolução de 1383-85 respeita as estruturas da sociedade feudal. Em 1383-85, do ponto de vista socioeconómico, o objectivo fundamental comum à burguesia e às classes populares era o de limitar os privilégios senhoriais, devendo, contudo, ter-se presente que eram diferentes entre si os objectivos concretos da burguesia e das demais classes populares. Em Aljubarrota, na realidade, encontravam-se muito poucos fidalgos do lado de Portugal. A principal nobreza portuguesa estava do fado castelhano, quer ali, em Aljubarrota, nas hostes de Castela, quer na chefia de povoações e castelos que se mantinham como ilhas ao serviço do inimigo, quer mesmo em Castela. Aliás, quando da primeira invasão castelhana, em princípios de 1384, o rei de Castela entrou praticamente sozinho em Portugal, antes do seu exército. Tal era o apoio que o rei de Castela tinha entre a nobreza portuguesa que o rei chegou à Guarda com a esposa e um pequeno séquito de umas trinta pessoas, sendo recebido processionalmente pelo bispo e clero e acorrendo depois numerosos fidalgos ao paço episcopal onde se hospedou. Em Aljubarrota, além de D. João I, Nuno Álvares e de mais uma dezena de grandes senhores haveria cerca de uma centena de nobres de modesta hierarquia. Ora, o número de membros da nobreza portuguesa é estimado, nos fins do séc. XIV, em 4000 a 5000 pessoas, não incluindo os membros da família real que seriam algumas centenas (Armando Castro, «História Económica de Portugal», II vol.). A nobreza que combatia contra os Portugueses em Aljubarrota tinha bem a noção do carácter de classe da guerra que fazia. Fernão Lopes dá-nos vários testemunhos: — Por meados de 1384 quando o nobre Gonçalo Mendes de Vasconcelos, senhor do castelo de Coimbra, entreviu por uma seteira do seu castelo, o exército de Nuno Álvares, que partia para Tomar, comentou para os seus privados o género de combatentes que compunham essa hoste, espantado que tais homens pudessem defender o reino contra um grande senhor como o rei de Castela, «salvo se Deus fosse seu capitão». — Quando o rei de Castela reuniu o conselho para decidir se devia dar batalha ou não, poucas horas antes do início desta, houve entre os seus conselheiros quem fosse de opinião que não se desse batalha pois se o rei de Castela fosse vencido teria sido derrotado «por um pouco número de pobre gente». — A covilheira do rei de Castela defumava os fidalgos com algumas defumaduras «para perderdes os maus cheiros destes chamorros, das casas onde vivem e aldeias onde moram». — Após a derrota de Aljubarrota, o rei de Castela, em fuga, ao chegar a Santarém lamenta-se de ter sido derrotado pelos «chamorros». «E se vós dizeis que outro tal e tanto aconteceu a meu pai verdade é que assim foi. Mas (…) de que gentes foi meu padre vencido? Foi-o de ingleses que são o frol da cavalaria do mundo, em tanto que, vencido por eles, não deixava de ficar honrado (…) E de que gentes fui eu vencido? Fui-o de chamorros que ainda que me Deus tanta mercê fizesse que a todos tivesse atados em cordas e os degolasse por minha mão, minha desonra não seria vingada».
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Como dissemos atrás, a Revolução de 1383-85 tomou, desde a sua eclosão, um carácter nacional, de luta peta independência, posta em perigo pela aliança da nobreza portuguesa com a de Castela. D. Leonor Teles manda alçar pendão por D. Beatriz, rainha de Portugal e de Castela. A rainha viúva pede a intervenção de Castela, a cujo rei entrega, em Santarém, a regência do reino, em Janeiro de 1384, com o apoio da alta nobreza portuguesa. Tem havido quem procure justificar o comportamento antipatriótico da aristocracia portuguesa afirmando que nessa época o sentimento nacional e patriótico seria inexistente. Mas a verdade é que esse sentimento já existia nessa época em Portugal e já existia de longa data. Não se terá esse sentimento de independência começado a definir partir da auto-proclamação de Afonso Henriques como rei de Portugal? O que se verificou é que não era essa nobreza feudal, como classe, a portador desse sentimento patriótico. A história mostra que não pode formar-se uma nação como uma comunidade de indivíduos que vivem no mesmo território e que, para além de relações económicas estáveis, estão ligados por uma língua comum e pelas particularidades da mentalidade, da cultura, do modo de vida, fixadas nos seus usos, costumes e tradições, sem que, na sua raiz, estejam classes produtivas directas e as demais classes populares. Os interesses destas classes, nos graves momentos de crise nacional, identificam-se com os interesses da Pátria. O mesmo não acontece quanto as classes privilegiadas: em determinadas condições históricas, para defenderem os seus interesses e as suas posições frente à acção revolucionária das massas populares, elas sacrificam o sentimento patriótico, são capazes de comprometer a independência do seu país em troca do auxílio estrangeiro, para se manterem no poder. Na tão grave situação de 1383-85, o sentimento nacional, a solidariedade activa entre as mais largas camadas de portugueses foi reforçada, mas este facto foi devido à luta das classes, não privilegiadas contra a nobreza feudal. A própria solidariedade activa entre a grande maioria da população atesta que já havia nessa época um arreigado sentimento pátrio. São muitas as referências de Fernão Lopes a esse sentimento pátrio: «o povo meúdo» quando a aristocracia, após a morte de D. Fernando, erguia o pendão por D. Beatriz, mulher do rei de Castela, respondia com «Arraial, arraial, por Portugal». Alguns exemplos:
· Os representantes do concelho de Alenquer dirigem-se ao Mestre de Avis afirmando o seu patriotismo, «somos portugueses e todos naturais destes reinos».
· Quando o Mestre de Avis se despede, em Coina, de Nuno Álvares Pereira, que marcha para o Alentejo como fronteiro dá-lhe o apoio de algumas dezenas de escudeiros, dizendo-lhe serem «verdadeiros portugueses».
· Os homens bons de Cerveira, Caminha e Monção enviam mensagens a Nuno Alvares Pereira: declaram-se «verdadeiros portugueses» e entregam-lhe voluntariamente essas povoações.
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